Meu corpo é lar de absurdos
Eu era criança quando o incômodo surgiu pela primeira vez. Histórias em quadrinhos nasceram improvisadas, prematuras e apaixonadas, rabiscadas com caneta e embalagem de cigarro e páginas de caderno. Pulavam da imaginação ao papel heróis, vilões, gêmeos separados na maternidade e um menino ordinário com cabelo de fogo que viajava entre dimensões. Super-herói de Gelo, Mark e Marcos Straw, Maxmillian — superpoderes e trama de novela mexicana à parte, esses carinhas representavam o que eu queria ser e, subconscientemente, o que eu era. Era engraçado o quanto eu torcia para que alguém chegasse e estivesse disposto a viajar comigo pelas páginas soltas — minutos, horas, anos-luz. “Vem ver a história que eu fiz” era a forma mais divertida de me apresentar a alguém.
Uma década depois, o sintoma apontou ao diagnóstico e foi nesse ano que, pela primeira vez, me imaginei escritor. Tive meu primeiro contato com a poesia e finalmente pensei que conseguiria compartilhar com as pessoas as insanidades que me vinham à cabeça toda vez que eu analisava o mundo. A gente tem esse quê de achar que é especial, né? Pelo menos até perceber que não é especial coisa nenhuma, graças ao tempo, à maturidade e ao bom senso. De lá pra cá, foram inúmeras ideias, um punhado de arquivos de Word espalhados por computadores obsoletos e pela nuvem. Experimentei todo tipo de atrocidade poética: clichês em forma de coração, rimas paupérrimas, trocadilhos mal elaborados, poemas-pílula intragáveis e tudo mais.
“Eu quero publicar um livro.”
“Eu tô trabalhando num livro.”
“Agora é só falar com a editora.”
Meus amigos cansaram das minhas repetições. A cada tentativa, meu foco mudava, o estilo mudava, minha confiança zarpava. E a grana também, né? Fui me despedindo dos devaneios e dos sonhos de escritor e aceitando minha realidade fordista de serviço e salário.
Mas o incômodo não passava. E foi depois de muitos hiperfocos, desfoques, e uma pós-graduação em Escrita Criativa que me vi em quarentena, diante da maior crise sanitária do século para que eu finalmente avaliasse a volta à escrita. A possibilidade de morrer sem ter experimentado a ideia de ser artista me assustava tanto quanto a própria ideia de morrer.
Era hora de voltar.
Só que o desafio era outro. Eu era outro. Não mais fazia questão que me conhecessem. Tinha aceitado as verdades do mundo. Conciliava o incômodo da autoexpressão com o desejo de ser apenas um conceito incorpóreo. Instagram fechado, amigos contados, rotina calculada, máscaras de proteção, quatro paredes.
O incômodo não passava. Durante a pandemia, o incômodo foi preenchendo cada vão do meu quarto bagunçado. E eu voltei a escrever. Como se ninguém fosse ler (ninguém lia). Como se o pão de cada dia dependesse dos meus versos (não dependia).
Selecionei uma coleção de setenta e poucos poemas e submeti a uma revisão crítica sob o codinome “Lar etéreo”. Eu queria uma obra com unidade e coesa. Não só a necessidade de unidade e coesão podou a quantidade de poemas pela metade como também renomeou o projeto. “Lar etéreo” abrigava essa visão equivocada de que eu precisava ser menos coisa e mais conceito. Mas não sou incorpóreo. Os dedos que metralham o teclado têm sentimentos e fôlego de vida. Carne, osso e um pouco de poesia.
A transformação dessas duas décadas que separam a criança dos rabiscos e o adulto dos versos trouxe, também, bonanças. A cada verso, amadurecimento e a transformação de quem aprendeu a habitar e celebrar o seu próprio corpo, com seus absurdos e belezas.
Com a pré-venda em março, entrego ao mundo um pedaço de mim, fruto de anos de busca e transformação. Que este livro seja um lembrete: a arte habita em cada um de nós. Acredite em suas inquietações, dê voz aos seus sonhos e construa seu próprio “lar de absurdos”.
PS: Não ignore o incômodo.